DOS FATOS ÀS TEORIAS
Já vimos que a ciência não termina com os fatos. Ela se inicia com eles. Inicia-se a partir de problemas suscitados pelos fatos.
Então os fatos são o ponto de partida, a partir da problematização, para um teoria científica.
O conhecimento científico não é uma simples cópia do real. O cientista não é um escriba da natureza que apenas registra fatos.
A ciência é um diálogo com o real que nos apresenta problemas que pedem soluções. As perguntas feitas determinam as respostas.
E porque isto? Porque o homem não se confunde com o mundo natural. Não somos coisa. O homem é separado do mundo real e só chega a ele através do discurso, da linguagem, da interpretação que são elementos profundamente humanos.
Já nossa experiência em relação ao real nos mostra que ele se dá e se furta.
Se o real não se dá plenamente então cabe a nós imaginarmos como ele deveria ser entrando no campo das interpretações. Mas tendo bem claro que nunca teremos certeza de que a nossa interpretação é a verdadeira realidade.
Leiamos o que nos diz Einstein escrevendo a respeitos dos conceitos físicos:
“Os conceitos físicos são livres criações do espírito humano e não, são, como se poderia acreditar, determinados exclusivamente pelo mundo exterior. No esforço que fazemos para compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco ao homem que tenta entender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem como abrir o estojo. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo que ele tornará responsável por tudo o que observa, mas nunca estará seguro de que sua imagem seja a única capaz de explicar suas observações. Nunca estará em condições de comparar sua imagem com o mecanismo real, e nem mesmo pode se representar a possibilidade ou o significado de uma tal comparação”. (citado por Claude Chrétien, no livro “A ciência em ação”, pág. 43-44)
Concluímos que nunca teremos a certeza do que é o real. A ciência não oferece cópias do real. Ela nos dá apenas teorias provisórias, interpretações do que seja o real. Nenhuma teoria é verdadeira no sentido que se identifica plenamente com o real. Seria se tivéssemos acesso direto à realidade, mas sabemos que isto não é possível. Na bela expressão do filósofo Rubem Alves, o cientista é um caçador do invisível. Ou lembrando Saint Exupery: “o essencial é invisível aos olhos”.
Então nos cabe imaginar, interpretar, criar teorias.
Poderíamos comparar teorias com redes. Se o pescador faz suas redes com fios, o cientista faz suas redes com palavras. Estas redes tem o nome deteorias.
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OBSERVAÇÃO: todo o texto que vem a seguir é do filósofo Rubem Alves, no livro Filosofia da Ciência, pág. 94-103 – o sublinhado, itálico, negrito são do professor Laerte
“Teorias são enunciados sobre o comportamento dos objetos do interesse do cientista.”
“Mas o valor da rede tem muito a ver com o tamanho das malhas. Se você só deseja peixes grandes mas usa uma rede que traz tudo, sua rede não é adequada.
Uma rede vale não só pelo que pega mas também pelo que deixa passar.
Por exemplo:
“a psicologia tradicional pensava que a sua lagoa só continha peixe que nadavam nas águas do consciente e do racional. quaisquer fenômenos que se desviassem da consciência e da racionalidade eram simplesmente classificados como perturbações irrelevantes, que não deviam ser levadas em consideração. Ela se comportava frente aos fenômenos mentais da mesma forma como um ouvinte de música se comporta, com o seu rádio de ondas curtas ligado. Junto com a música parece uma série de bips curtos, que não são fala, nem música, nem coisa nenhuma. Ele ignora os tais ruídos e concentra sua atenção na bela ópera que ouve… Um outro ouvinte, que conheça código morse, pode perceber que aquilo que o amante da música escutou sem “dar ouvidos” é uma importante mensagem.
A psicologia tradicional ignorava os lapsos, os sonhos, os comportamentos neuróticos e psicóticos, como sendo destituídos de significação. Por isto sus redes propositadamente deixavam que eles passassem: eram peixes que os cozinheiros de plantão não sabiam preparar… Freud elaborou uma nova teoria e os peixes antes rejeitados como repulsivos passaram a ser procurados com empenho. Lapsos, sonhos, sintomas neuróticos são os ingredientes da nova receita e, por isto mesmo, pescados por suas redes.
Lembremo-nos a caçada de Semmelweis:
Qual era o problema? Havia um criminoso à solta numa das alas do hospital. Curioso que ele só atacasse as mulheres que eram tratadas pelos mais competentes e mais bem preparados médicos e estudantes de medicina.
Eis o caminho seguido por Semmelweis:
Antes de mais nada ele fazia uma hipótese. Lembre-se de que uma hipótese é uma afirmação feita por nós e que depois pedimos para a natureza confirmar ou negar.
Depois de feita a hipótese, preparava a rede ou a armadilha. É óbvio que as redes ou armadilhas (a que a gente dá o nome de métodos) variam conforme a hipótese. Elas são específicas para o bicho a ser pego. Se o bicho é vegetariano, não adianta preparar isca de carne. Se é carnívoro, isca de banana não adianta.
Primeira hipótese: a alta taxa de mortalidade é devida a condições epidêmicas. Se esta rede fosse boa, entretanto, ela deveria pescar numa ala do hospital o mesmo número de mulheres que na outra. Mas na ala as enfermeiras morria muito menos gente.
Segunda hipótese: no lado das enfermeiras as mulheres dão á luz de lado, e no lado dos médicos dão á luz de costas. Armadilha fácil. É só fazer com que as mulheres da ala médica dêem a luz de lado. Se a taxa de mortalidade decrescer, o assassino foi preso.
E assim foi, até que, por acidente, o criminoso cometeu um erro. Matou quem não devia matar: um homem, médico. Dissecando uma mulher que morrera, cortou-se com bisturi.
Concluiu Semmelweis: É assim que o criminoso age. Ele anda da matéria cadavérica para a matéria viva. Como os médicos e estudantes fazem dissecações para depois examinar as parturientes, eles funcionam como cúmplices do criminoso. O criminoso anda nas suas mãos.
Esta é a hipótese. Semmelweis tem, agora, de fazer a pergunta à natureza: “Isto é verdade?” E é agora que ele tem de preparar a armadilha. Se o criminoso anda nas mãos dos médicos, basta que o capturemos neste lugar.
Ele preparou uma solução que, segundo o seu julgamento, provocaria uma limpeza completa de matéria cadavérica. E todas as mãos tiveram que ser lavadas. O criminoso foi preso na arapuca.
Qual a resposta da natureza?
” – Sim, sua hipótese é verdadeira.”
Mas lembremo-nos que os “sim” da natureza são sempre um talvez.
Na verdade, a hipótese de Semmelweis funcionou bem, resolveu o problema, deu conta do recado, e temos tendência de pensar que, quando uma coisa funciona bem, ela deva ser verdadeira. Mais tarde se percebeu que a solução de Semmelweis, embora funcionasse bem – e funciona até hoje! – não era verdadeira. Ela não contava o que realmente acontecia. As redes de Semmelweis não podiam pescar germes…
Note que cada rede é preparada para um tipo específico de criminoso.
Na ciência redes preparadas para um certo peixe deixam a passar todos os outros.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
- Alves, Rubem. Filosofia da Ciência – Introdução ao jogo e suas regras. Editora Brasiliense. São Paulo, 1981
- Chrétien, Claude. A ciência em Ação. Papirus Editora, 1994